21 out O multilinguismo ajuda a aproximar crianças da literatura? por Paula de Santis
A resposta é sim. Viver em outro idioma é como abrir um livro novo todos os dias.
“Vier” e “puser”. Nunca “se ele vim” ou “se eu pôr”. Assim como “vai tomar banho” ou “já escovou os dentes?”, o futuro do subjuntivo dos verbos “vir” e “pôr” na língua portuguesa é daqueles bordões de mãe que repito todos os dias.
Como fala feijão em francês? “Head” é a cabeça, não é, mamãe? Como é mesmo a música do aniversário em português? Me ensina a falar espanhol?
Para deixar tudo mais complexo – e divertido – além das perguntas objetivas, surgem também as palavras de duplo sentido ou as brincadeiras de linguagem – na língua materna, paterna ou no idioma do novo país-casa, que nem sempre coincide com os dois anteriores.
Aqui em casa já rimos muito com “vou dar um pulo no supermercado e já volto”. “Um pulo???”, espanta-se e alegra-se ao mesmo tempo a pequena, achando que vai começar uma nova diversão.
E todo dia tem alguém pensando na morte da bezerra, que eles repetem sem cansar, mesmo que ninguém esteja pensando na morte da coitadinha da bezerra.
Saudade do tempo em que as crianças só queriam saber de onde vinham os bebês? Depende. Desafios como esses, presentes no dia a dia de pais, mães, famílias, cuidadores e educadores de crianças bilíngues ou multilíngues podem ser encarados de formas muito diferentes, variando sempre conforme a idade e a maturidade das crianças e, sobretudo, de acordo com o nível de preocupação dos pais.
Eles podem ser quebra-cabeça ou poesia em estado puro. Podem significar noites sem dormir ou um tesouro secreto. Podem gerar consultas com psicólogos e pedagogos ou se transformar em varinha mágica.
E o que a literatura tem a ver com isso?
Viver em outro idioma ou crescer falando dois ou mais deles é como abrir um livro novo todos os dias. Nessa obra, escrita e desenhada na vida real, as crianças vão ter aula de história, de arte, de cultura, de hábitos e costumes, de mitologia e de diversidade, sem perceber.
Vão aprender ainda mais sobre seus próprios países de origem. Não raramente mais do que seus próprios habitantes. Vão, aos poucos e com muita liberdade, conhecer a si mesmas e aprender a identificar seu lugar no mundo – e não estou falando aqui de um território geográfico.
Toda essa riqueza, não importa em quais dimensões e nem a sua intensidade, vai dar sentido à literatura de papel. E chegou o momento de usar a varinha mágica!
Ao abrir um livro de verdade para ler, ouvir ou apenas passear por suas páginas, os pequenos e seu mediador de leitura vão se divertir e pensar de uma maneira diferente. Vão trocar impressões e conversar de forma mais profunda. Vão questionar a vida e elaborar hipóteses preciosas, como o tesouro secreto. Tudo isso de forma espontânea, instintiva e, mais importante, sem ser maçante.
Spoiler: com o livro nas mãos, uma nova aventura idiomática começa. Mas vou deixar essa história para um próximo artigo. 🙂
Paula de Santis é jornalista e escritora. É pós-graduanda n’A Casa Tombada (O Livro para a Infância). Paula é mãe do Rodrigo e da Alice. Sua família multicultural e devoradora de livros mora atualmente na França.